Quem cala… | Sobre consentimento

O consentimento é a anuência para praticar algum ato – e não se aplica só ao sexo, mas nele é particularmente importante. Por ser uma atividade de imensa proximidade física e geralmente praticada a duas pessoas em cômodos fechados, nada mais justo que os envolvidos estejam confortáveis para conversar e acordar o que pode e não pode rolar.

https://youtu.be/L9HQtKhzuOo

Mas o consentimento não precisa necessariamente ser uma conversa. Ele pode vir na forma de beijos mais intensos, dedos mais curiosos, gemidos mais altos, roupas sendo tiradas. Pode ser um pedido verbal, mas também pode ser uma mão guiando a outra. A comunicação é chave e pode assumir muitas formas. Silêncio e imobilidade, porém, não estão inclusos; se alguém está com medo de agir e com medo de falar, não está apta a consentir.

A ausência de sim é um não retumbante. Em caso de dúvida, não prossiga com o que estiver fazendo e confirme com o seu parceire se está confortável e interessade. Vou explicitar: quem cala não consente.

Conforme você passa tempo com uma pessoa, seja num ato sexual específico ou durante um relacionamento, essa comunicação vai se afinando e você pode reconhecer outros sinais e aprender do que essa pessoa gosta. E o consentimento dado uma vez não é perpétuo; o que foi combinado em um dia não necessariamente está garantido em outro.

É essencial assinalar que pessoas adormecidas ou entorpecidas também não estão aptas a consentir. Existe uma analogia que ficou muito popular entre chá e consentimento: se alguém não está em condições de aceitar chá, ela não está em condições de transar. E se ela mudar de ideia enquanto você prepara o chá… ela tem todo o direito de não tomá-lo. Segue o vídeo legendado:

Além disso, eu considero ideal não apenas que a pessoa tope fazer sexo, mas que ela esteja interessada, entusiasmada e que tenha todas as informações relevantes para o contexto. Por exemplo: eu posso topar beijar uma pessoa, mas se eu soubesse que ela é casada, talvez mude de ideia. Alguém pode topar transar sem usar camisinha, mas se souber que o parceire tem uma IST (Infecção Sexualmente Transmissível), pode mudar de ideia. Posso querer beijar uma pessoa, mas se eu souber em quem ela votou nas últimas eleições presidenciais posso preferir distância… E assim vai.

Considerando que crianças não têm como compreender completamente as implicações de atos sexuais, fazer sexo com crianças é crime, bem como praticar atos sexuais na presença de uma criança. Aqui no Brasil, a idade de consentimento é de 14 anos e há alguns contextos em que sexo com uma pessoas entre 14 e 18 anos também pode configurar o crime de estupro de vulnerável. Em um ano em que vem à tona um segundo caso de vítima infantil de estupro que precisa insistir para obter amparo para abortar em um dos países com mais casamentos infantis no mundo (o Brasil está em quarto no ranking mundial!!!)… não há como não se preocupar com a efetividade desta lei.

A lei que descreve os “Crimes contra a dignidade sexual“ e estabelece suas penas é a 12.015. Ela lista o estupro, violação sexual e assédio, limita e penaliza a prostituição e proíbe a exploração sexual e o tráfico de pessoas com este, e é nela que se descrevem os crimes sexuais contra vulneráveis. Além de crianças, aqui também se incluem pessoas “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”, que pode ter interpretações capacitistas e tolher a autonomia de pessoas com deficiência.

Infelizmente estamos imerses em uma cultura que normaliza a violência sexual e até a retrata como desejável: é a cultura do estupro. Ela ensina homens que ele têm direito sobre o corpo feminino e, se ela disser não, na verdade está se fazendo de difícil. Somos permanentemente expostos a imagens sexualizadas de corpos femininos para vender produtos, mas coagimos, ostracizamos e agredimos mulheres que fazem livre uso do próprio corpo ou da própria sexualidade.

A primeira vez em que pensei entrei em contato com a ideia de que estupros não acontece apenas em becos escuros foi na minha primeira leitura de O mito da beleza, de Naomi Wolf, aos quinze anos. A jornalista relata que mesmo quando mulheres não sabem que estão sendo estupradas por seus parceiros, elas apresentam os mesmos sintomas de vítimas que reconhecem a violência que viveram como abuso sexual: depressão, culpa e impulsos suicidas (p.220). No Brasil, o estupro marital não era considerado estupro até 2003; na perspectiva que perseverou tantos anos na lei e que ainda é culturalmente difundida, o sexo seria uma obrigação conjugal.

Ainda em O mito da beleza, Wolf fala de um estudo da década de 1980 que revelou um dado alarmante:

Em 1986, o pesquisador da UCLA, Neil Malamuth, relatou que 30% dos estudantes afirmaram que cometeriam estupro se tivessem certeza de não serem responsabilizados. Quando a pesquisa alterou a pergunta, substituindo o termo “estupro” pela expressão “forçar uma mulher a fazer sexo”, 58% responderam que sim. (p.218)

Ou seja: homens jovens que estavam estudando em uma universidade prestigiosa não tiveram pudor em responder que estuprariam se não houvesse consequências. Quando a nomenclatura muda (mas o ato é o mesmo, não se enganem), mais da metade dos entrevistados afirmaram que forçariam uma mulher a fazer sexo. Eu fico imaginando quantos mais não ficaram com vergonha de responder “sim”, mas que não hesitam em ser invasivos e abusivos nas suas vidas pessoais.

Uma pesquisa de 2017 da Binghamton University não nos permite o otimismo. Novamente, os entrevistados foram rapazes heterossexuais e estudantes universitários, e novamente eles não parecem entender o consentimento. Em cenários hipotéticos, apresentaram baixa compreensão a recusas verbais (2,34 em uma escala de 1 a 7) – ou seja: mesmo escutando um “não” ou um “pare”, eles podem não entender que a outra pessoa não está de acordo. Um fenômeno identificado pelos pesquisadores foi o de precedência: os entrevistados parecem entender que uma interação sexual passada indica consentimento futuro, mesmo diante de uma recusa clara da mulher em questão.

Pôster de uma campanha da Binghamton University, que ilustra que o consentimento é claro, não é coagido, é ativo, é responsabilidade das pessoas que estão interagindo, pode ser retirado a qualquer momento e não pode ser dado por uma pessoa incapacitada.

Uma pesquisa ainda mais alarmante de 2019 feito pelo Fundo de população das Nações Unidas (UNFPA) em 22 países indica que uma em cada quatro mulheres não tem condições para dizer não para sexo. As perguntas eram “Você pode dizer não para seu parceiro se não quiser fazer sexo?”, “Quem geralmente toma a decisão sobre o seu uso de contraceptivos?” e “Quem geralmente toma decisões sobre os seus cuidados médicos?”. Esta pesquisa também identificou fatores de autonomia para tomar decisões informadas sobre a própria sexualidade e saúde reprodutiva em cinco níveis: individual (como autonomia financeira e conhecimento sobre saúde sexual), institucional (custos de acesso a hospitais ou clínicas, falta de privacidade durante atendimentos), comunitário (imposição cultural de decisões masculinas, crenças religiosas), interpessoal (apoio do parceiro e comunicação na relação) e demográfico/socioeconômico (acesso a rádio e a TV, raça, grau de escolaridade).

Eu não encontrei pesquisas brasileiras amplas que foquem em consentimento. Se você conhecer, me manda? 

Notem que as pesquisas focam em relacionamentos heterossexuais. É um reflexo do patriarcado que o consentimento seja uma questão especialmente delicada em relações heterossexuais. Somos ensinadas que mulheres devem aos homens a sua sexualidade. A sexualidade feminina não é tratada como um aspecto inerente de sua individualidade, mas algo a ser entregue para os outros. Isso aliena mulheres de seus próprios desejos e de sua autonomia sexual, como a pesquisa da UNPFA indica.

Mesmo num relacionamento saudável, ou seja, sem abuso de nenhuma das partes, pode ser difícil negar sexo para alguém que você ama. Afinal, somos ensinados que afetividade e sexualidade são a mesma coisa. Então a gente pede ou cede sexo quando queremos pedir ou oferecer carinho.

Assim, mesmo dentro de uma relação saudável, pessoas de todos os gêneros recorrem a subterfúgios para não transar. Pode-se dizer que está com aquela dor de cabeça, que teve um dia cheio, que está com cólica ou dor nas costas, que bateu o dedinho no móvel… Quando a gente poderia dizer: “Meu bem, hoje não. Depois a gente vê”.

É importante dizer também que meros sinais físicos não podem ser tomados de imediato como consentimento. É necessário fazer uma verificação. Então mamilos entumescidos, áreas lubrificadas, olhar lascivo ou uma ereção não são consentimento para nenhuma prática sexual específica. Apesar de esses sinais poderem parecer convidativos, sempre confira com seu parceire.

Para manter um exercício da sexualidade saudável e entusiasmante é essencial garantir que todas as partes estejam confortáveis para se comunicar, inclusive para comunicar um não.

Tem alguma dúvida ou sugestão? Sentaí, vamos conversar.

Você pode entrar em contato pelos comentários deste post, do vídeo no YouTube ou pelo email contato@agorapare.com.

Cuidem de si e dos seus parceiros.

BIBLIOGRAFIA

LEI Nº 12.015, DE 7 DE AGOSTO DE 2009

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Estupro de Vulnerável diante do Estatuto da Pessoa com Deficiência. 2017

WOLF, Naomi. O mito da beleza. Tradução: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

QUEIROZ, NANA. Pequenas esposas. Revista AzMina.

Brasil ocupa a 4ª posição no ranking mundial de casamento infantil de meninas. Marie 

Claire, 25 jun. 2019

Mônica Bergamo. Menina de 11 anos grávida após estupro sofre para acessar aborto legalFolha de S. Paulo, 30 ago. 2020.

Vitória Batistoti. O que você ainda não entendeu sobre consentimento sexual. Galileu, 24 jan. 2018.

LOFGREEN, Ashton M.; MATTSON, Richard E.; WAGNER, Samantha A.; ORTIZ, Edwin G. e JOHNSON, Matthew D. Situational and Dispositional Determinants of College Men’s Perception of Women’s Sexual Desire and Consent to Sex: A Factorial Vignette Analysis.  02 nov. 2017.

LEITE, Tayná. Consentimento no sexo também é algo a ser ensinado aos nossos filhos. Revista AZMina, 28 fev. 2018.